CICLO
Quando terminou o curso quase perdeu a voz de tanto
gritar. Finalmente poderia chamar-se professor. Quão doce seria o momento de
ouvir: "Professor, tira aqui uma dúvida". Seu pai nunca sorriu pra
isso. Sempre que se tocava no assunto em casa o velho no máximo dava meio
sorriso e de vez em quando soltava: "É, vamo ver" e se calava
novamente. Sócrates nem ligava. O apoio da mãe e seus sonhos de fazer algo pelo
país eram suficientes para continuar naquele caminho e assim é que após quatro
anos de Licenciatura o jovem idealista concluiu seu curso de Letras.
Cinco e meia o rapaz levantou, arrumou as
coisas, tomou café rápido e saiu para seu primeiro dia de aula. Enquanto não
aparecia concurso resolveu trabalhar como temporário na rede pública. O amigo
Alfredo lhe oferecera uma vaga na escola em que trabalhava. "Bora
Sócrates, lá é bom. Os alunos são esforçados, a indisciplina não é das piores e
escola particular tem um detalhe bom! Os pais pegam pesado nos filhos, afinal
tão pagando né?!". Sócrates agradeceu, mas preferiu a escola pública. Somente
lá é que poderia colocar seus planos idealistas em prática, e mesmo assim
pensava: "Não me formei em Universidade pública? Devolverei à sociedade o
que ela me concedeu." Assim era Sócrates. Um brasileiro no mesmo calibre
de Policarpo Quaresma.
"Olá, a senhora é a diretora. Eu sou Sócrates.
Estou aqui para assu...", "Eu sei, eu sei moço. Pelo amor de Deus,
você vai assumir o sétimo ano da escola! Eles são terríveis. Já botaram três
professores pra correr... Você já deu aula?", "Bom me formei agora
e...", "Há meu Deus era só o que me faltava. Como é a secretaria
manda um professor sem experiência pra cá? Isso é um absurdo! Meu filho, só tem
tu, vai tu mesmo! Presta atenção! Eles tem vários problemas de aprendizagem.
Não há acompanhamento por parte da família. Alguns usam drogas, outros são
envolvidos com gangues. Se você observar alguma arma é melhor fazer de conta
que nem viu. Há quatro alunos especiais, mas só dois tem laudo, você vai para o
sétimo mas dará conteúdo diversificado pois alguns ainda não sabem ler nem
escrever, além disso deverá fazer planos para os alunos especiais e aplicar
esses planos durante a aula. Há! Reprovação nem pensar viu!", "E se
eles não aprenderem? Quer dizer, você disse que alguns quase não leem...",
"Professor, e o senhor? Pra que servirá na sala senão para ensiná-los, ora
essa!!".
Quando o intervalo tocou, dois anos da vida de
Sócrates pareciam ter passado naquelas duas horas de aula, se é possível chamar
aquele diálogo truncado, interrompido e gritado que se estabeleceu. Na sala dos
professores um colega de profissão tomava seu café. O olhar era baixo e
sombreado pelas olheiras. "Você é o novo professor não é? Prazer, meu nome
é Kepler, coisa de nerd. Meu pai era professor de física. Diz ai pra mim. Como
é que um cara novo como você faz esse tipo de escolha? Quer dizer, porque ser
professor, se com sua capacidade você poderia se tornar um profissional mais
valorizado?", A pergunta incomodou muito a Sócrates que retomou o vigor e
nos 15 minutos restantes justificou sua escolha percorrendo os caminhos da
ética, da moral e do dever cívico. Citou os mais iminentes teóricos marxistas,
expôs com veemência a luta de classes e teria defendido uma tese de doutorado
se a diretora não o alertasse sobre o tempo apontando o dedo para o relógio.
Sócrates recolheu seus pertences e caminhou para seu segundo tempo
profundamente contrariado com o novo amigo que de semelhante a ele só tinha a
alcunha de um grande personagem da construção do saber universal. As ideias,
porém eram completamente diferentes.
Muitas idas e vindas, muitos recreios,
muitas discussões políticas e filosóficas seguiram-se à primeira anteriormente
narrada. Vinte anos de ofício passaram-se e o amigo Kepler deixou de incomodar
Sócrates. Um infarto fulminante enquanto explicava os monômios e os polinômios,
levou o cansado mestre à "terra dos pés juntos". Pelo menos agora
Sócrates tomava sua xícara de café sem ter que puxar conversa. O fôlego
diminuíra com o tempo, efeito das aulas e gritos ocasionais. Sentado, cotovelos
na mesa, olhos baixos e sombreados pelas olheiras, Sócrates viu entrar na sala
dos professores o substituto de Kepler. Rapaz novo de olhar vivo e cheio de
ideais. O novato sentou-se ao lado de Sócrates que com voz rouca perguntou: "Você
é o novo professor não é? Prazer, meu nome é Sócrates, coisa de boleiro. Meu
pai era corintiano. Diz ai pra mim! Como é que um cara novo como você faz esse
tipo de escolha? Quer dizer, porque ser professor, se com sua capacidade você
poderia se tornar um profissional mais valorizado?".
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