Mais
uma chance
Chegou tarde do trabalho. Estava pálido como se
tivesse passado uma grande aflição. Era noite de tempestade, mas as emoções,
pensamentos e vertigens eram fortes. Não se conteve. Havia uma súbita
inspiração nascendo em sua alma. Sabia que se não escrevesse perderia o
momento. Perderia aquela comunicação divina que só os amantes da linguagem
literária conhecem. Não falou com a esposa nem com os filhos. Era preciso
agilidade. Nenhum minuto poderia se perder. A história já se adiantava nos seus
momentos máximos e as mãos, pobres mãos! Sempre mais lentas que o cérebro, orgânica
máquina cinzenta à qual nenhum computador conseguiu superar.
Abriu a porta do pequeno escritório que mais
parecia um quarto de monge. No lugar de um crucifixo ou de uma bíblia repousava
um velho laptop que só adquiria vida nos momentos que agora estavam a se
desenrolar. Um homem caminhando sozinho numa noite de chuva desenhava-se
nas linhas do editor de texto. As palavras começaram a pintar as cenas frias e
sombrias de uma noite que ficaria pra sempre na mente do personagem que agora
nascia. Carros estacionados e de vez em quando diamantes brilhantes reluziam
nos recônditos escuros nas faces de felinos, eternos amigos da boemia e da
escuridão. Ele vinha apressado. Perdera o último trem e agora o mau tempo o
obrigara a uma caminhada de dez quadras que o separavam de sua casa.
No meio do caminho sentiu que estava sendo seguido.
O medo insistia em crescer no seu peito, mas agora era reprimido pelo ingênuo
desejo de refrear a realidade apenas crendo-a diferente. Ao seu redor apenas
prédios comerciais e poucas janelas iluminadas denunciando sonâmbulos moradores
que mais pareciam vampiros a despertar quando o centro da cidade dormia. A
chuva agora era torrencial! Os pingos se chocavam com força em seu rosto. Os
pés completamente encharcados produziam um caldo de lama em seus sapatos que
agora inchavam conforme seu passo se apressava. Por um instante esqueceu seu
temor ignorado, mas agora o medo emitia sons. Sons de passos que se aproximavam
cada vez mais. Repeliu o medo mais uma vez. Os passos agora pareciam estar a
menos de dez metros. Virou-se. “É um assalto!” Uma arma agora estava apontada
para sua testa. Ficou imóvel. Indefeso. Mal respirava e a voz não saiu quando o
homem exigiu a carteira. Levou uma coronhada na testa. “Tá surdo otário! Passa
a carteira!” Trêmulo alcançou a carteira no bolso de trás. Entregou ao homem
que rapidamente a abriu e retirou o pouco dinheiro que lá havia. Fitou os olhos
de sua vitima. Olhos que já vira inúmeras vezes, ali mesmo naquela rua. Estavam
cheios do sentimento que lhe dava êxtase. Um prazer doentio que o obrigava a
finalizar suas ações com o máximo de covardia. “Vai morrer!”. Empunhou a arma,
puxou o gatilho...
O personagem da pequena história então pode ver
tudo, mesmo com olhos fechados viu o filme. Aquele que dizem passar diante dos
olhos na hora da morte. Viu sua infância, adolescência, juventude e maturidade.
Viu todos os momentos, os bons e os maus. Os rostos felizes daqueles que lhe
deram o prazer de dividir sua existência. Viu os que se foram e os que ainda
estavam com ele. Ouvia as vozes dos filhos. Seus gritinhos pela casa em dias de
domingo. Dias tão desejosos de descanso e que quase sempre lhe roubavam o
restinho das forças não consumidas no trabalho. Viu sua mulher. Sentiu seu
cheiro, sentiu suas carnes quentes e depois aquele par de olhos tão calorosos,
tão doces, tão meigos...
Abriu os olhos com os “clics” repetidos da arma que
não funcionara. Como todos os covardes, o bandido sentiu que poderia ser pego
por sua vitima e correu retornando às trevas que o acolhiam envolvendo-o como a
um demônio. Retomou seu caminho. Chegou a casa e só depois de registrar tudo o
que viveu em seu pequeno laptop foi que saiu do quarto e amou sua família como
nunca havia amado antes.
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